Corcel II

Corcel II

Tinha aquele lance de soterrar os sonhos com as expectativas frustradas que acumulei nos últimos anos. Eu enchia o Corcel II marrom e enferrujado com o que sobrou de todos os meus planos, um maço de cigarros e uma garrafa de whisky e dirigia até o bar mais distante que o tanque de combustível me permitia alcançar. A vida era um vazio que eu não conseguia preencher.

Num desses dias encontrei com esse cara e ele estava bem bêbado, com os olhos inchados e vermelhos, olhando o prato com o resto do PF que tinha mandado pra dentro. Senti que ele tava mais fudido do que eu e, embora não costume me compadecer com ninguém, achei que tinha que ir até lá e perguntar o que tava rolando.

Sentei e empurrei a minha garrafa em direção à ele. Ele levantou os olhos. Seu nariz era um inhame avermelhado e áspero. Seus olhos eram de um tom azulado, como quem tem catarata. Os cabelos brancos e ralos mostravam o couro cabeludo rosado e com algumas manchas meio marrons. Ele suspirou, tirou a tampa da garrafa com um movimento do dedão e deu um gole comprido. Engoliu sem fazer careta. Fiquei esperando que ele dissesse algo, mas ele só ajeitou uma mecha branca-amarelada do cabelo que caia em seus olhos. Eu peguei a garrafa e dei um gole. Fiquei um tempo ali ainda, encarando o velho e esperando reação.

Quando ameacei levantar ele disse que já estava naquele posto há dois dias. E que não tinha como arrumar o caminhão porque a grana dele tinha acabado e a carga que ele tava levando provavelmente estragaria toda se não chegasse ao destino em três dias. Me contou que tinha acabado de perder a esposa que lutava contra uma leucemia há cinco anos. E que os filhos seguiram a vida sem ter contato com os pais. “Não os vejo há uns 15 anos, mais ou menos. Sei que tenho um neto e uma neta que jamais saberão que tem um avô”.

Senti pena do velho e ofereci o Corcel II pra ele agilizar uma correria e tentar arrumar o bruto dele. Ele não aceitou. Pegou a garrafa da minha mão e deu outro gole bem comprido. Era como se ele começasse a beber em São Paulo e parasse só em Campinas. “Em vez do Corcel, me dê essa garrafa”. Dei a garrafa ao velho e ele agradeceu com um aceno de cabeça.

Me despedi estendendo a mão que ficou balançando sozinha no ar. Senti um nó na garganta quando me liguei que nem sempre temos olhos para enxergar nosso reflexo. Saí do restaurante, acendi um cigarro e entrei no Corcel.

No asfalto da estrada o reflexo da vida se parecia um pouco mais com o que eu queria enxergar.


Este conto faz parte da série de publicações escrita por Aldo Jr, na editoria Mesa de Bar.